Aquele era o meu mundo… Ali eu existia sendo eu mesmo, sendo um todo, sendo meu. Fechada a porta, luzes se acendiam, cenários se desvelavam, via-me alçado ao imaginário, viajava sem sair do lugar, visitava outros ambientes, outros “planetas”! Mesmo na escuridão da noite, podia enxergar perfeitamente. O rádio tocava canções para embalar meus pensamentos, músicas antigas, daquelas que lhe acalmam, lhe entorpecem.
Todo mundo precisa de um “quarto”. Um lugar só seu, feito de estrelas e breu, com chaves só pelo lado de dentro, impenetrável, inviolável, onde nada do mundo exterior possa lhe atingir. Chega de tanta realidade! Há de se poder “delirar” um pouco, pois quem suporta viver o concreto o tempo inteiro? Naquele “quarto” eu me despia de tudo o que não era, me vestia de tudo o que gostaria de ser. Ali “…eu era o rei. Era o bedel e era também Juiz. E pela a minha Lei a gente era obrigado a ser feliz”. Chico Buarque.
Mas eu cresci, mudei de lugar, mudei de “quarto”… O novo não era do mesmo jeito, tinha mais glamour, mas nele o “show” não acontecia à noite, as cortinas não se abriam, os palhaços não apareciam, a vida era rotina e solidão. Eu tinha saudades do “velho amigo”, daquele pedacinho de mundo que eu havia criado, tecido de pétalas, coberto de sons, de cores, fantasias, onde sempre havia festas, risos, era um mundo dentro do meu mundo, um refúgio, um lugar onde me sentia protegido.
O tempo se passou… Os sonhos se esfarelaram pelo chão da vida. As estrelas despencaram do firmamento, o sol se pôs, tudo ficou denso, escuro, cheio de silêncios, de poeira levada pelo vento. A realidade veio me brindar com sua dose de fatalismos, com seus desgastes próprios, trouxe consigo as dores de existir, de crescer, de ter de enxergar e não mais ver, de ter de ter e não bastar apenas ser. E eu pensava comigo: “eu queria tanto estar no escuro do meu quarto a meia-noite, a meia luz, pensando, daria tudo por meu mundo e nada mais”. Guilherme Arantes.
Aí eu fiz o que já devia ter feito há muito tempo! Voltei para dentro do “quarto”! Sim, descobri que esse “lugar” não precisa ser real, pode ser imaginário, acessível pelos “conduítes” da alma, disponível a qualquer hora. Nele é possível afrouxar os nós da gravata, não atender ao celular, nem ter de ler e-mails ou olhar extratos bancários. São breves momentos que duram uma eternidade, pois ali você é só seu e de mais ninguém.
Bem afirmou Henry Miller, ainda que pareça idiotice: “manter a mente vazia é uma proeza… Estar silencioso o dia inteiro, não ver nenhum jornal, não ouvir rádio, não escutar tagarelices, estar perfeita e completamente ocioso… Os jornais engendram mentiras, ódio, ganância, inveja, desconfiança, medo, maldade. Nós não precisamos da verdade como ela nos é servida nos jornais diários. Precisamos de paz, solidão e ociosidade”.
Jesus era um homem de oração, de reclusão. Tinha necessidade do isolamento, da introspecção, da busca do intangível, do imaterial, de alimentar sua alma de verdades e não apenas de coisas. Ele também tinha um “quarto” desses… Estava em todo lugar e em lugar nenhum. Às vezes era o jardim, em outras as montanhas. De certa feita, fez dele a beira mar e, num outro momento, uma estalagem qualquer, no meio do nada, acolhido pelo frio, embalado pelo cansaço, debaixo do céu estrelado, deitado sobre o chão. Ali sentia os aromas do deserto, sabia que mesmo sem ter onde reclinar a cabeça, possuía um “quarto” somente seu…
Recentemente, visitei aquele “cantinho” da infância. Depois de 27 anos voltei ao apartamento onde meus pais moraram por quase duas décadas. Nele estava residindo um casal de velhinhos. Muito simpáticos, me convidaram a entrar. Mostraram-me a casa reformada, as mudanças realizadas. Tudo ficou muito bonito.
Mas houve um momento em que eu cheguei ao quarto que havia sido meu. O coração acelerou, os olhos encheram-se de lágrimas, uma nostalgia irresistível tomou conta de minha mente pragmática, não dada a muitas emoções. “Eu dormia aqui”, disse. O casal me deixou só por alguns instantes, tempo suficiente para ver toda minha vida diante dos meus olhos.
No canto do quarto, sentado na cama, estava eu mesmo, com uns 11 anos de idade. Eu olhei para mim e me perguntei: “como você está?”. Com voz embargada, o outro eu de mim mesmo respondeu: “eu tô bem, eu vou indo…”. O “garoto” insistiu: “você está mais velho, há marcas no seu rosto, e outras na sua alma. As de fora não importam tanto, as de dentro, todavia, talvez nem mesmo o tempo possa apagá-las.”. “Tenho de ir”, disse. “Vá com calma, ele falou. Vá mais leve, mais livre, vá com Deus!”.
Já faz meses que vivi esta experiência imaginária, ficcional… Ela me ajudou a entender algumas coisas; outras eu ainda estou discernindo, aos poucos, lentamente. Não consegui escrever sobre este fato antes, talvez por medo de me expor, talvez por medo do leitor, talvez por medo de mim mesmo… É que eu sei que “minha solidão não tem nada a ver com a presença ou ausência de pessoas… Detesto quem me rouba a solidão, sem em troca me oferecer verdadeiramente companhia”. Nietzsche.
Agora, com todo respeito, peço-lhe licença: vou para o meu “quarto”. Não, não é o quarto do meu apartamento, é o “quarto” que abriga a minha alma e o meu coração. Você não tem um desses? Bem, sugiro que adquira um o mais breve possível. Mas não procure nos classificados, nem se preocupe com dinheiro, este “quarto” está dentro de você, e só você pode encontrá-lo, entrar nele, e usufruir o que de melhor ele possa lhe proporcionar.
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* Carlos Moreira – Extraído do site Genizah
Parêntesis (e haja paciência, da parte dos santos, para comigo!):
Penso que dizer “amém-amém-amém” às coisas verdadeiras, nem sempre é enriquecedor; e prefiro, mesmo reconhecendo algum grau de verdade em algo, questionar esse algo. Questionar, mantendo o respeito à idéia e – sem sombra de dúvida – ao proponente; e questionar, não para calar a idéia, senão para ouvir mais a respeito do mesma objeto. Meu pensamento é de que questionando algo (mesmo uma percepção que eu proprio adote), me seja proporcionado mais esclarecimento sobre a mesma questão. (Fim do parêntesis incômodo. Rsrsrsrs!)
Comentando sobre a experiência de “o quarto” para todos os seres humanos, recorro a uma figura que muitas vezes me vem à lembrança: “Pular da janela do 40º andar de um edifício é uma excelente, salutar, agradável e tranquila experiência- desde que para, por exemplo, um rouxinol. Para um pônei, é simplesmente fatal.”.
Exercício de introspecção, desde que na presença e direção do Espírito de Deus, é salutar e necessário a todo filho de Deus. Mas introspecção (mesmo que feita por um filho de Deus) mas nos poderes naturais da própria alma ao invés de no Espírito Santo, é prejudicial e gera equívocos; e a introspecção exercitada por uma criatura humana de Deus (sem a regeneração) não me levará – por mais que eu a exercite – a experimentar comunhão com Deus.
Muito equívoco, muita mentira não desmascarada, parece ter nascido nessas duas últimas formas de “o quarto” (introspecção) que citei; muita coisa que – e me parece que nenhuma confissão religiosa está isenta – nega (quer expressamente, quer subrepticiamente) a Escritura.
Pessoalmente, nada tenho contra a experiência de “o quarto”, ora comentada. A questão (assim me parece) é: qual o conhecimento e espiritualidade que eu, leitor do texto, detenho? (Sou, na figura a que recorri, “um rouxinol” ou “um pônei”, entrando no quarto?)
Querido Ivo. graça e paz!
O rev. Carlos Moreira escreve textos que visam abençoar o povo de Deus. Logo, acredito que, usando de sua metáfora, a questão é um salto do rouxinol.
Contudo, acredito que a melhor pessoa para esclarecer profundamente a questão seja o próprio autor do texto. Por isso, coloco à sua disposição o link do blog pessoal do mesmo.
Creio que o rev. Carlos terá o mesmo prazer de travar o diálogo profícuo que temos tido até aqui.
Um forte abraço.
Paz e bem!
http://anovacristandade.blogspot.com.br/